vendredi 24 septembre 2010


SAUDADES (História de Menina e moça)
DE BERNARDIM RIBEIRO
Capitulo I
Em que a donzela começa a sua historia
Menina e moça, me levaram de casa de meu pae para longes terras. Qual fosse então a causa d'aquela minha levada,—era eu pequena,—não na soube. Agora, não lhe ponho outra, senão que já então, parece, havia de ser o que depois foi.

Vivi ali tanto tempo, quanto foi necessario para não poder viver em outra parte.

Muito contente fui eu n'aquela terra; mas, coitada de mim, em breve espaço se mudou tudo aquilo que em longo tempo se buscou, e para longo tempo se buscava! Grande desventura foi a que me fez ser triste, ou a que, porventura, me fez ser leda![10]
Mas depois que vi tantas cousas trocadas por outras, e o prazer feito mágoa maior, a tanta tristeza cheguei que mais me pesava do bem que tive, que do mal que tinha.

Escolhi para meu contentamento (se em tristezas e saudades ha algum) vir viver para este monte, onde o lugar, e mingoa da conversação da gente, fosse como para meu cuidado cumpria: porque grande erro fôra, depois de tantos desgostos, quantos eu com estes meus olhos vi, aventurar-me ainda a esperar do mundo o descanso que êle nunca deu a ninguem!—Estando eu aqui só, tam longe de toda a outra gente, e de mim ainda mais longe; d'onde não vejo senão serras, de um lado, que se não mudam nunca, e do outro agoas do mar, que nunca estão quedas, cuidava eu já que esquecia á desventura, porque éla, e depois eu, com todo o poder que ambas pudemos, não deixámos em mim nada em que pudesse nova mágoa ter lugar,—antes havia muito tempo que tudo era povoado de tristezas, e com razão. Mas parece que, em desventuras, ha mudanças para outras desventuras; porque, no bem, não as havia para outro bem; e foi assim que, por caso estranho, fui levada a um lugar onde me foram ante os meus olhos apresentadas,[11] em cousas alheias, todas as minhas angustias; e o meu sentido d'ouvir não ficou sem sua parte da dôr.

Ali vi então, na piedade que tive d'outrem, quam grande a devêra ter de mim, se não fôra tam demasiadamente mais amiga de minha dôr do que parece que foi de mim quem me é a causa d'éla; mas tamanha é a razão porque sou triste que nunca me veio mal nenhum que eu não andasse em busca d'êle.

D'aqui me vem a mim a parecer que esta mudança, em que me eu vi, já então começava a buscar, quando esta terra, onde me éla aconteceu, me aprouve mais que outra nenhuma, para vir aqui acabar os poucos dias de vida que eu cuidei que me sobejavam. Mas n'isto, como em outras cousas muitas, me enganei eu. Agora, ha já dous anos que estou aqui, e não sei ainda tam sómente determinar para quando me aguarda a derradeira hora! Não póde já vir longe!

Isto me pôs em duvida de começar a escrever as cousas que vi e ouvi.

Mas, depois, cuidando comigo, disse eu que recear de não acabar de escrever o que vi, não era causa para o deixar de fazer; pois não havia de escrever para ninguem,[12] senão para mim só. Quanto mais que, em cousas não acabadas, não havia de ser esta a primeira: pois quando vi eu prazer acabado, ou mal que tivesse fim?! Antes me pareceu que este tempo que hei de estar aqui n'este ermo (como a meu mal aprouve) não o podia empregar em cousa que mais de minha vontade fosse:—pois Deus quis que assim minha vontade seja.

Se em algum tempo se achar este livrinho na mão de pessoas alegres, não o leiam, que, porventura, parecendo-lhe que seus casos serão mudaveis, como os aqui contados, o seu prazer lhe será menos prazer. Isto, onde eu estivesse, me doeria, porque assaz bastava eu nascer para minhas mágoas, quanto mais ainda para as d'outrem. Os tristes o poderão lêr: mas ahi não os houve mais, homens, depois que nas mulheres houve piedade; mulheres, sim, porque sempre nos homens houve desamor: mas para élas não o faço eu, pois que o seu mal é tamanho que se não póde confortar com outro nenhum. Para as mais entristecer, sem-razão seria querer eu que o lessem élas; antes lhes peço muito que fujam d'êle e de todas as cousas de tristeza, que, ainda com isto, poucos serão os dias que hão de poder ser ledas,—porque[13] assim está ordenado pela desventura com que élas nascem.

Para uma só pessoa podia êle ser; mas d'esta não soube eu mais parte, depois que as suas desditas, e as minhas, o levaram para longes terras estranhas, onde bem sei eu que, vivo ou morto, o possue a terra sem prazer nenhum. Meu amigo verdadeiro, quem me vos levou tam longe? Vós comigo, e eu convosco, sós, sabiamos suportar nossos grandes desgostos, e tam pequenos para os de depois! A vós, contava eu tudo. Como vós vos fostes, tudo se tornou tristeza; nem parece senão que estava espreitando já que vos fosseis. E para que tudo mais me magoasse, nem tam sómente me foi deixado, em vossa partida, o conforto de saber para que parte da terra ieis, porque descansariam os meus olhos em levarem para lá a vista!

Tudo me foi tirado no meu mal; remedio nem conforto, nenhum houve ahi. Para morrer mais depressa, me pudera isto aproveitar; mas, para isso, não me aproveitou. Ainda convosco usou a vossa desventura algum modo de piedade (dos que não costuma ter com nenhuma pessoa) em vos alongar da vista d'esta terra; pois que, se para não sentirdes mágoas não havia remedio, para as[14] não ouvirdes vo-lo deu. Coitada de mim, que estou falando, e não vejo eu agora que leva o vento as minhas palavras, e que me não póde ouvir a quem eu falo! Bem sei eu que não era para isto a que me agora quero pôr; que o escrever alguma cousa pede muito repouso; e a mim as minhas mágoas ora me levam para um cabo, ora para outro; trazem-me assim, que me é forçoso tomar as palavras que me élas dão, porque não sou tam constrangida a servir o engenho, como a minha dôr. D'estas culpas me acharão muitas n'este livrinho: mas da minha ventura foram élas. Ainda que, quem me manda a mim olhar por culpas, nem por desculpas?

O livro ha de ser do que vae escrito n'êle. Das tristezas não se pode contar nada ordenadamente, porque desordenadamente acontecem élas. Tambem, por outra parte, não se me dá nada que o não leia ninguem; que eu não no faço senão para um só, ou para nenhum; pois d'êle, como disse, não sei novas, tanto ha.

Mas, se ainda me está guardado, para me ser em algum tempo outorgado, que este pequeno penhor de meus longos suspiros vá ante os seus olhos, muitas outras cousas desejo, mas esta me seria assaz.