lundi 24 mai 2010

Callas e os índios


Há algumas semanas vi na France 3 uma reportagem realizada por uma equipe de jornalistas e antropólogos franceses numa tribo de índios brasileiros que vive em estado de isolamento total nos confins da floresta amazónica.
Sem me alongar muito com tudo aquilo que me impressionou na reportagem e nas lições de filosofia de vida, de civismo e humanismo que pude retirar ao aprender sobre aquele grupo, gostaria contudo, de realçar algo que me impressionou e tocou profundamente: o encontro daqueles indígenas com a música.

Os homens da tribo reuniram-se todos numa das habitações da aldeia onde foi instalado um laptop. No écran do computador iam surgindo imagens do "mundo civilizado"... recordo-me apenas de algumas... guerra, arranha-céus, hamburger, mulheres com burka, neve... só para citar algumas das imagens que apareciam numa ordem arbitrária e que iam provocando em todos as mais variadas reações: espanto, riso, revolta, incompreensão, dúvida, perplexidade, etc... até ao momento em que surgiu no écran a figura de Maria Callas interpretando uma ária.
Os risos e os comentários pararam e fez-se silêncio. Todos os índios, adultos e crianças, de olhos pregados no laptop ouviam aquela música estranha.. que não se parecia com coisa nenhuma que já tivessem ouvido antes e da qual não compreendiam uma única palavra mas que ia provocando neles estranhas e indescritíveis sensações... algo inexplicável estava a acontecer no íntimo de cada um e só era visível pelas lágrimas que começaram as rolar nas suas faces.
Terminado o pequeno vídeo, alguém lhes perguntou o que tinham sentido ao ouvir aquela música, responderam que, na verdade, não sabiam definir exactamente o que sentiam mas que era algo que não precisava nem de tradução e nem de explicações porque se tratava da "fala" da alma. Disseram mais, "o que aquela mulher com uma voz tão linda e tão sentida cantava só podia vir do mais fundo do seu ser e por isso penetrava nos corações de quem a escutava".

Deste lado do mundo, ao assisitir àquele espectáculo de vida onde a alma humana era a protagonista também eu me emocionei e chorei com aqueles índios, em diferido no tempo mas em uníssono no sentir. Afinal somos todos tão parecidos meio às nossas diferenças e rótulos... repeti mais uma vez baixinho e só para mim, as palavras do índio: a música, universal... indescritível... inexplicável... penetrante... é a "fala" da alma...

"A música é revelada em nós, mas não por nós. A música brota de nosso coração misterioso, manifestando sentimentos que sequer imaginávamos possuir; digo: hospedar. É por isso que dizem que no coração não se manda. Ora! não se pode mandar naquilo que não lhe pertence. E o coração não pertence ao Homem – ele apenas o carrega, presente dado por Deus. O que do coração procede não é dado ao Homem conhecer, excede todo o seu raso entendimento. E eis que o que procede do coração humano, sai em forma de música." (G.de Castro)

2 commentaires:

  1. Que texto lindo. Incrível como essa é exatamente a percepção que tenho da música: uma linguagem universal capaz de desfazer barreiras culturais e geográficas. O texto é um bom exemplo do que ocorre quando a arte é expressa de dentro para fora, quando mostra sinceridade.

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  2. O G. de Castro descreveu com abilidade a minha experiencia e visao pessoal quando tocado pela sensacao que leva a composicao de um pedaco de musica. Nao poucas foram as vezes quando no evento de compor, os que tiveram a oportunidade de acompanhar o processo, ficam maravilhados com a facilidade e casualidade do produto que reflete o que a alma esta cheia. Scott Peck no seu livro-novela "In Heaven as on Earth," aponta que no ceu, ha uma boa possibilidade de musica ser o meio de comunicacao que transcende historia e cultura. Acho que os indios concordam com ele!

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